quinta-feira, 27 de maio de 2010

Tico e o Caso do Mascarado

Descobrir a literatura baseada em pulps que Luís Fernando Veríssimo criou com o Ed Mort, e saber que ele não criaria assim mais histórias para o personagem, só me instigaram em criar o detetive Tico para o zine O Escracho do Regaço. Depois, conhecer personagens como o Philip Marlowe, de Raymond Chandler, e até a literatura de Sherlock Holmes feita por Conan O'Doyle só instigaram ainda mais este universo que chega agora ao blog do Circo:

Tico e o Caso do Mascarado

Tico. É o meu nome. Começa com "t" e termina com "o". Sou detetive particular. Tenho um escritório na Taquara, subúrbio do Rio de Janeiro. Fica do lado de um centro de assistência social de um deputado e em cima de uma loteria que para fugir da crise está vendendo sorvete. A casquinha com duas bolas é um real. Só a casquinha sai por trinta centavos. Já eu permaneço tão quebrado que a última casquinha que comi foi de um machucado. No cotovelo. Para fugir da fome tentei até aderir ao suco de luz. Só que não gostei muito do sabor de lâmpada fervida. Deve ser porque estava queimada. Deixa pra lá. Parei de pensar em comida e comecei a me refrescar com o vento que entrava pela janela. Até que lembrei que não tenho mais janela. Até tinha. Só que ela era tão pequena que o síndico a tampou achando que era um buraco não fechado de ar-condicionado. O síndico vem aqui uma, no máximo duas vezes por semana. Embora o encontrem diariamente, nos três turnos de expediente, no bar do Guto. Às vezes, até dá serão por lá.

Pois bem, foi quando eu estava, na falta de uma bebida, tomando ar, que ela entrou. Quer dizer, quem entra são as pessoas comum. Aquilo era uma estréia diante dos meus olhos. Uma morena tão grande que se eu parasse para a admirar como merecia, começaria a observar na hora da novela das seis e quando começasse o programa do Jô só teria passado um pouco dos joelhos. Isso se eu não me prendesse aos detalhes. Como se não bastasse toda a beleza externa que ela me proporcionava, ainda falava. E que voz:

- Detetive particular? - ela perguntou.

- Pelo visto, não sou o único. Foi você quem me descobriu. - disse numa tentativa de quebrar o gelo. Ela não sorriu.

- Preciso que me ajude a encontrar uma pessoa. Um homem. O Mascarado.

Num momento de lampejo pensei em explicá-la não haver motivo para isso. O mascarado era eu, iria dizer, só que a máscara era um passado e agora eu poderia viver ao lado dela de cara exposta, sem vergonha alguma. Todavia, achei mais sensato perguntar:

- Quem?

- Sou casada com o Mascarado. Você deve conhecê-lo. Está em todos os jornais.

Realmente lembrei de ter lido sobre um Mascarado num jornal da semana passada. Porém a leitura foi abruptamente interrompida. O jornaleiro reclamou que eu estava há três minutos com o jornal na mão e não fazia nenhuma menção em comprá-lo. Disse a ele que nunca mais voltaria àquela banca e virei a cara, ignorando assim o “que bom” que o mesmo acabara de soltar. Porém não queria perder o foco no momento que estava vivendo e foquei no decote da morena parada diante da minha pessoa. Disfarçando, é claro. Fingi estar fazendo a ponta no lápis. Na falta de um, utilizei uma bic ponta fina cuja carga acabara há exatos três anos. Ela continuou:

- Como você sabe, meu marido é um dos líderes da milícia na zona oeste. Esteve preso até sair da penitenciária pela porta da frente.

- Então a justiça prevaleceu, ele foi inocentado e em seguida solto. - concluí como um Sherlock concluiria para seu criado Watson. Finalmente ela sorriu. E prosseguiu.

- Percebo que para um detetive você também sabe ser irônico. Dizem que foi um dos subornos mais caros daquele presídio. Desde aquela tarde, Mascarado está foragido.

- E desde então ninguém mais o viu. - Achei que agora sim estaria sendo conclusivo.

- Pelo contrário. - contrariou-me ela mais uma vez – Mascarado gravou um vídeo no local onde está escondido e o postou na internet. Disse que vai voltar para tomar o que é seu. A cidade toda assistiu o Mascarado pela web. É inclusive um sucesso de acessos.

Quando a coisa mais moderna do seu escritório é um furador manual de papel, você realmente crê que talvez seja a hora de se modernizar. Não me deixei distrair pela minha falta de upgrade e voltei a reparar na moça. Se chamava Lurdes, mas era conhecida como Lola. O Mascarado se chamava Pascoal, mas era conhecido como Mascarado. Eu me chamava Tico e era conhecido como endividado. Definitivamente, é um tempo em que ninguém mais se trata pelo nome. Lurdes e Pascoal, ou melhor, Lola e Mascarado, se conheceram no pagode do Betão, um bombeiro que atua como miliciano e sambista. Isso há quatro anos. Mascarado na época apenas fazia a segurança de uns políticos locais. Ela fazia supletivo a noite e trabalhava numa bomboniere. Dois meses depois ela já havia largado o estudo e o trampo para viver com ele numa casa pequena porém confortável. A ascensão de Mascarado foi rápida. O vereador para quem fazia a proteção fora assassinado. Mascarado chegou a ser acusado, só que nada foi provado. Até porque no dia do julgamento misteriosamente, como consta nos autos, as testemunhas resolveram simplesmente não aparecer para testemunhar nada. Em menos de um ano, assumira o controle de vários grupos de milicianos. Um tempo depois, acabou preso com um grupo de pessoas ligadas à milícia. A diferença é que o Mascarado arrumou uma maneira de meter o pé pela porta da frente. E isso sem ter sido julgado ou inocentado!

Depois de me entregar este obscuro dossiê de seu cônjuge, Lola me abraçou chorando. Os seios chegaram antes. Bem antes. Ela chorava como um chafariz da belle èpoque e me pedia ajuda. Confessou que o amava e estava infeliz de não ter notícias dele. Temia até o fato de ter virado uma viúva sem saber. As lágrimas escorrendo dos olhos dela e chegando ao decote acionaram o lado mais sensível em mim, e olhei para o nada esmiuçando os olhos como quem faz um juramento de vingança ou sofre de miopia. Ela se afastou de mim e pediu descrição de minha parte. Mascarado havia inimigos e a polícia nada poderia saber. Perguntou se precisava de algum adiantamento.

- Pode ter certeza que isso vai custar caro. - Disse tirando um cigarro e colocando na boca. Me dei mal. Não era o cigarro. Era a bic.

- Diga-me o valor. - disse ela de forma direta.

- Pode começar com uma casquinha ali da loteria. Duas bolas, por favor.

Ela riu novamente e tirou um cheque de quinhentos reais da carteira. Agora era trocar aquele cheque, pegar minha casquinha e começar o trabalho. Me senti poderoso. Poderia pedir até quatro bolas de sorvete.

(continua em breve neste blog)

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